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Exposição no âmbito do Projecto de investigação Novas Cartas Portuguesas 40 anos depois  [PTDC/CLE-LLI/110473/2009]

Minhas irmãs: Mas o que pode a literatura? Ou antes: o que podem as palavras?
(...)
Que tempo? O nosso tempo. E que arma, que arma utilizamos ou desprezamos nós? Em que refúgio nos abrigamos ou que luta é a nossa enquanto apenas no domínio das palavras?

[Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa (1972), Novas Cartas Portuguesas]

A transgressão é um acto que envolve o limite, aquela linha estreita onde se espelha o flash da sua passagem, mas talvez também toda a sua própria trajectória, mesmo a sua origem; é possível que a transgressão assuma todo o seu espaço na linha que atravessa.
[Michel Foucault (1986),“Prefácio à Transgressão]

Esta exposição pretende criar um espaço de diálogo intertextual e polifónico entre ‘narrativas’ várias, tendo por ancoragem o texto das Novas Cartas Portuguesas (1972; 2010), explorando a sua vertente performativa enquanto discurso ‘de resistência’ que recusa fechar-se sobre si mesmo, rejeitando qualquer tipo de essencialismo ou verdade última. Invocamos a ousadia das suas autoras, … e o modo disruptivo como a identidade feminina é por elas representada, numa tessitura que desconstrói e expõe o espartilho dos valores tradicionais e estereótipos da feminilidade (a submissão, a passividade, a vulnerabilidade do ‘eterno feminino’), para os subverter ou parodiar, expondo-os neste texto exemplar, à la limite.

 

A narrativa insurrecional de Novas Cartas Portuguesas fundamenta-se na rotura que este texto inaugura na literatura portuguesa contemporânea, quer a nível discursivo, quer a nível meta-discursivo. E citamos Maria de Lurdes Pintasilgo no Pré-Prefácio à sua 3ª edição, de 1980, afirmando que As Novas Cartas apenas podem ser definidas “pelo excesso”, “porque rompem, extravasam”: “Excessivas as situações, excessivo o tom, excessivas as repetições dum mesmo acto, excessivo afinal todo o livro que vai terminando sem realmente terminar, como se tal excesso não coubesse nas dimensões normais”, afirma Pintasilgo (1980:8).
A sua história de vida, enquanto livro, é breve, mas absolutamente singular, já que se muitos foram os livros censurados pelo Fascismo, poucos ou nenhum outro o foi por estas razões: um livro escrito por três mulheres, em absoluta cumplicidade, texto anónimo enquanto escrita colectiva, fazendo o relato da história de vida de várias gerações de Marianas, desde a enclausurada monja do sec. XVII, até ao suicídio de uma outra Mariana nos anos 70 do séc. XX. Livro que, ao dizer as histórias destas mulheres (a paixão, o sofrimento, a dor da ausência, a morte, as perdas irreparáveis, o silêncio e a clausura), soube dizer a História do seu país: a guerra colonial, a emigração, o analfabetismo, a repressão, a censura, a exploração de que as mulheres são sempre, enquanto cidadãs, duplamente vítimas. Livro que, de novo citando Pintasilgo, usa o corpo da mulher como metonímia da repressão e da censura de um país e de todo um povo: “a alienação do corpo é a zona utilizada preferencialmente, embora não exclusivamente pelas autoras para dizer, a um tempo, a opressão e a revolta, a sujeição e a autonomia das mulheres” (1980:9).
Foi assim considerado um atrevimento que três mulheres ousassem o gesto subversivo de publicar o impublicável, a transgressão de articular o’ não-dito’ e o inter/dito. O livro editado em 72 não chegou a sair a público, imediatamente apreendido pela censura sob a capa da cláusula constitucional de “atentado à moral pública e pornografia”. Suprema humilhação para as autoras que se viram atingidas por um processo difamatório em que lhes era retirada a dignidade última de ofensa à lei por “crime político ou acto subversivo”, esperando o regime que deste modo o processo não atraísse a atenção  e a solidariedade públicas.  Discriminação sexual, claramente, recusando às três mulheres o estatuto ou a ousadia de querer com “triviais palavras de mulher” desassossegar o regime. Fazia-se assim jus à profecia das suas autoras:
A revolta das mulheres é o que leva à convulsão em todos os estratos sociais; nada fica de pé, nem relações de classe, nem de grupo, nem individuais, toda a repressão terá de ser desenraizada ... tudo terá de ser de novo... E o problema da mulher no meio disto tudo, não é o de perder ou de ganhar, é o da sua identidade (NCP, 231).

Um livro cuja gestação de escrita durara justamente nove meses, feitos de “cumplicidade e jogo”, mas também recheados de prenúncios da dor e das vicissitudes por que passaria:

E nós, e nós, de quem a quem o rumo, os dizeres que nem assinados vão, o trio de mãos que mais de três não seja e anónimo o coro? Oh quanta problemática prevejo, manas, existiremos três numa só cousa e nem bem lhe sabemos disto a causa de nada e por isso as mãos nos damos e lhes damos, nos damos o redondo da mão o som agudo – a escrita, roda de saias-folhas, viração de quê? Garantia porém a quem folheia – o tema é de passagem, de passionar, passar paixões e o tom é compaixão, é compartido com paixão (NCP, p.35).


Carla Cruz, Isabel Ribeiro e Luísa Cunha prolongam nesta exposição e neste espaço que fazem seu, as palavras, os silêncios, os ritmos, a luz e as sombras de Novas Cartas Portuguesas. Num diálogo que se constrói inter e intratextualmente com o texto-âncora, cada uma das artistas dá novo corpo e nova voz às páginas que ousaram resistir ao silêncio, cada uma delas inscrevendo a sua linguagem própria, a sua subjectividade e o seu corpo de mulher nas entrelinhas do texto matricial. Cada uma delas o interroga assim, performativamente, em ‘palavras’ de hoje, que fizeram suas, que reconhecemos como nossas. Não numa visão ou versão mimética da realidade e daquilo que é “ser mulher” ou ser feminista hoje, mas numa postura interrogante e desafiadora do que se julga estanque, fixo e imutável. Numa perspectiva expectante de um “futuro próximo”, construído em cidadania plena.
A linguagem disruptiva, desafiante e inovadora que os textos das Novas Cartas nos trazem, torna-se no fio condutor das obras das três artistas presentes. Carla Cruz apresenta um conjunto de obras na continuidade do seu projecto All My Indepent Women  iniciado em 2005, que em torno das NCP se propõem constituir uma rede de diversidade e criatividade afirmando um espaço próprio na cultura contemporânea, em busca de novas formas, novas linguagens e novas poéticas “que lidam com as questões da relação da diferença sexual/género/poder”. A obra de Luisa Cunha propõe uma reflexão sobre o carácter da “linguagem tornada objecto”. Usa o som como imagem de ruptura, presente ao longo de todos os textos de NCP, em sintonia com o carácter poético do texto.
Isabel Ribeiro estabelece como fio condutor do seu trabalho, o tempo da primeira edição de NCP, e o tempo da mais recente edição na sua actualização com as notas de rodapé. A sua reflexão centra-se sobretudo nas relações do exercício de poder entre géneros e classes e no diálogo que se estabelece ao longo dessa linha temporal através da contestação ao poder instituído.

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